Dossier: Constitucionalismo Latinoamericano, Derecho Indígena y Estatal II
Desafios da aldeia indígena Maracanã/RJ e a resposta do “Constitucionalismo Democrático Latino Americano”
Challenges of the indigenous village Maracanã/RJ and the response of the “Latin American Democratic Constitutionalism”
Desafios da aldeia indígena Maracanã/RJ e a resposta do “Constitucionalismo Democrático Latino Americano”
Revista Jangwa Pana, vol. 21, núm. 1, pp. 52-63, 2022
Universidad del Magdalena
Recepción: 29 Enero 2021
Aprobación: 11 Marzo 2022
Resumo: Este artigo movimenta algumas questões referentes à participação política indígena de acordo com as bases teóricas do “constitucionalismo democrático latino americano”. O objetivo central consiste em compreender parcela dos desafios da experiência constitucional brasileira tendo em vista as disputas pelo território da aldeia indígena Maracanã localizada na cidade do Rio de Janeiro/RJ. Busca-se identificar como essas tensões sociais e jurídicas se materializam e as dificuldades impostas pelas utilizações autoritárias dos elementos de origem popular. Para tanto, utiliza-se a revisão de literatura e a análise documental para identificar as respostas que o marco teórico e as práticas institucional e social brasileiras oferecem. Chega-se à conclusão de que as práticas analisadas dificultam a compreensão e o tratamento adequado da questão territorial indígena.
Palavras-chave: Aldeia indígena Maracanã, Constitucionalismo democrático latino americano, Reconhecimento étnico, Território indígena.
Abstract: This article moves some issues concerning indigenous political participation according to the theoretical foundations of “Latin American democratic constitutionalism”. The central objective is to understand part of the challenges of the Brazilian constitutional experience in view of the disputes over the territory of the indigenous village Maracanã located in the city of Rio de Janeiro/RJ. It seeks to identify how these social and legal tensions materialize and the difficulties imposed by the authoritarian uses of the elements of popular origin. To this end, the literature review and the document analysis uses to identify the answers that the theoretical framework and Brazilian institutional and social practices offer. The conclusion is that the practices analyzed make it difficult to understand and deal adequately with the indigenous territorial issue.
Keywords: Maracanã indigenous village, Latin American democratic constitutionalism, Ethnic recognition, Indigenous territory.
Introdução
O populismo, quase sempre acompanhado de uma feição autoritária, é traço recorrente, porém, não exclusivo, na América Latina. Ao que tudo indica essa percepção inicial não é afastada nem mesmo pelo pluralismo político, jurídico e social que, ao contrário do que tudo indica, poderiam inclusive reforçar certas tendências autoritárias (Alterio, 2014, p. 289). Diferentemente de endossar que a origem popular seja o cerne da questão sustenta-se que é por meio da apropriação autoritária desses movimentos sociais que a problemática se caracteriza.
Aliás, essa não é a única tensão a ser enfrentada pelo artigo. Em que pese haver propostas de inserção do Brasil no “constitucionalismo democratizante sul-americano” (Pinto, 2014), não há como falar em sua perfeita adequação teórica e prática no “novo constitucionalismo latino-americano” (Farias et al., 2018) ou “constitucionalismo popular” (Gargarella, 2008) sobretudo quando se examina mais de perto os assuntos ligados aos territórios indígenas.
Pretende-se por meio de um recorte de pesquisa mista, teórica e aplicada, apresentar considerações específicas acerca dos eixos relacionados as antigas preocupações indígenas que se manifestam no tempo presente. Implica, portanto, compreender algumas das respostas oferecidas tanto pela teoria constitucional latino-americana, quanto pelas instituições estatais e sociais brasileiras.
Ademais, tem-se que a expressão “constitucionalismo democrático latino americano” é formada por uma multiplicidade de pensamentos, práticas e arranjos institucionais caracterizados basicamente pela busca de ampliação da participação social no tratamento dos problemas ligados a pauta pública. E as disputas sobre o território indígena possuem complexidades próprias cujas características do ambiente urbano acentuam os desafios. Igualmente, percebe-se que a temática dos “indígenas em contexto urbano” (Nascimento y Vieira, 2015) ou das “aldeias indígenas urbanas” (Batistoti y Latosinski, 2019) ainda possui poucas reflexões.
Objetivamente essa situação problema se realiza pela investigação de uma possível resposta, ainda que provisória, do constitucionalismo democrático latino americano para os territórios indígenas. Essas pautas são atravessadas pelo chamado “populismo autoritário” bastante presente no momento atual brasileiro. Expressão originalmente empregada por Hall e outros (1978) que designa um conjunto de distorções quando parcela das narrativas populares são apropriadas e utilizadas de forma contrárias aos seus próprios interesses.
Em tal contexto, produzem-se respostas que proclamam substituir a participação popular pela vontade dos representantes, muitas das vezes produto de coalizões político-partidárias momentaneamente majoritárias. Esses posicionamentos são alvos de contestações direta pelos movimentos sociais que buscam participar da atribuição dos sentidos e dos alcances do texto e do contexto constitucional.
Diante disso, as metanarrativas de um “populismo autoritário”, segundo expressão de Hall et al. (1978, p. 304-305), formam complexas estruturas de aparência de legitimidade que envolvem diversos sujeitos da opinião pública, recrutada em favor dos equívocos estatais e até mesmo de discursos mais incisivos em defesa da disciplina e da ordem social. Vale registrar que os autores utilizam essa locução quando analisam a relação existente entre o direito, a ordem social e o estado de exceção.[1]
Nesse ponto, as questões se complexificam ainda mais quando confrontadas com a perspectiva do constitucionalismo democrático latino americano que, dentre outras características, insere ou promete inserir a participação do povo de maneira efetiva e direta. Isso, num primeiro momento, parece entrar em contradição, contudo, a utilização da categoria “autoritária” vem a calhar para a compreensão do atual contexto brasileiro em relação à situação do território indígena, que permanece sem respostas.
“Populismo autoritário” (Hall et. al., 1978) é, nessa ótica, uma disfunção daquilo que deveria ser uma das formas de manifestação autênticas da soberania popular. Com essa afirmação não se confunde a parte com o todo, ou seja, nem tudo aquilo que advém do “povo” ou das camadas populares ostentam essa pretensão classificatória com tendência depreciativa. Todavia, parece acertado supor que, não raro, estes discursos são apropriados e utilizados de forma indevida e com propósitos bem específicos.
A hipótese que será adotada como ponto de partida consiste em compreender que, até o momento, as respostas teóricas e práticas oferecidas são insuficientes para conformar as disputas pelo território da aldeia indígena Maracanã localizada na cidade do Rio de Janeiro/RJ. Isso explica, em parte, pelo menos do ponto de vista do fenômeno focalizado, a baixa inserção do Brasil no constitucionalismo democrático latino americano, que, por sua vez, se apresenta como um caminho possível e, não como o ponto de chegada a ser alcançado.
Noutras palavras, por mais que os movimentos sociais estejam atuantes, articulados e combativos na defesa e na manutenção de seus direitos e garantias fundamentais e sociais demandam esforços normativos e institucionais para a tentativa de bloquear a “onda conservadora” registrada no Brasil. Sentimento pré-existente no imaginário coletivo que foi bastante acentuado em resposta às jornadas de junho de 2013, também presente nas reações jurídicas e políticas registradas de 2016 em diante, fatos que, por sua vez, atualizam o comprometimento das “condições de exercício da cidadania” (Moisés, 1995, p. 265).
O objetivo, portanto, consiste em compreender alguns desafios enfrentados pela experiência constitucional brasileira em tempos de ascendência de pautas majoritariamente contrárias aos legítimos interesses indígenas, bem como as capacidades de respostas institucionais e dos movimentos sociais. Num plano mais específico, consiste em problematizar essa situação por meio do movimento de resistência situado na aldeia indígena Maracanã na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
Para essa empreitada, utiliza-se como metodologia a revisão de literatura e a análise documental para identificar as respostas apresentadas pelo marco teórico do constitucionalismo democrático latino americano e a realidade institucional e social brasileira. Adicionalmente, elege-se as reflexões de Butler (2018) sobre a compreensão dos sujeitos concretos que constituem o elemento povo - em verdade, trata-se de um elemento crucial para um Estado que se pretenda democrático e de direito - que será interpretado em sua especificidade e não objeto de análises em abstrato.
Realiza-se aproximações com a perspectiva descolonial, que será trabalhada pelas concepções teóricas de Quijano (1978; 2005), conjugadas, naquilo que for compatível, com a “teoria do discurso” de Laclau (2013), para aproximar os sentidos implicados na atuação dos movimentos envolvidos na questão territorial indígena. Para desenvolver essa problemática, também será realizado um esforço aplicado ao posicionamento judicial sobre a aldeia indígena Maracanã/RJ, mediante análise documental do agravo de instrumento n. 2016.00.00.008735-9, prolatado em novembro de 2016, pela Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
O exame dessas questões possibilitará compreender, ainda que de forma singularizada, uma das experiências brasileiras no tratamento institucional das questões afetas ao território indígena. Estabelecidas essas premissas, cumpre apresentar o itinerário que será percorrido. Afora a introdução, a conclusão e as referências, esse artigo será estruturado em três partes sucessivas, a saber: primeiro, realizam-se considerações teóricas acerca dos sujeitos políticos envolvidos. Na segunda parte, reflete-se sobre as possíveis respostas do constitucionalismo democrático latino americano para a questão indígena e isso implica considerar a adesão (ou não) do Brasil ao sobredito movimento. Em seguida, na terceira parte, expõe-se reflexões sobre a resistência indígena da aldeia Maracanã/RJ.
As contribuições desse artigo para os temas do constitucionalismo latino americano e das “aldeias indígenas urbanas”, na perspectiva brasileira, caminham no sentido de oferecer uma compreensão das estruturas teóricas do constitucionalismo baseada numa experiência concreta. Ressalvas feitas a baixa adesão brasileira ao constitucionalismo democrático latino americano (para não falar na impossibilidade), as análises estarão circunscritas à luta pelo território da aldeia indígena Maracanã/RJ. Desse modo, as reflexões estão situadas entre as ofensivas e as tentativas de respostas dos movimentos indígenas.
Respostas convencionais para o sujeito povo: limitações institucionais
Embora para compreender as demandas indígenas não seja necessário voltar as raízes do constitucionalismo ocidental clássico (estadunidense e europeu), deve-se compreender que as respostas tradicionalmente apresentadas não comtemplam as especificidades do tema abordado. Por mais que sejam importantes as limitações impostas ao exercício do poder estatal, por intermédio de técnicas específicas como o check and balances, no modelo anglo-saxão ou pela séparation des pouvoirs, no modelo francês, isoladamente não são capazes de construírem a legitimidade e o consentimento das pessoas governadas.
Tais investigações perpassam pela proposta de um projeto de constitucionalismo que se pretenda democrático para as discussões sobre a distinção fundamental entre soberania e tirania; entre a produção de liberdade e de igualdade; ou ainda pela construção de legitimidade do exercício dos poderes constituinte e constituído em relação a distinção de suas categorias de força ou de violência (legitimidade e ilegitimidade).
Compreender os elementos materiais que orientam a ativação do poder constituinte originário, importa não apenas para questões de mobilização política, mas, sobretudo, pelo que antecede a esse evento social que possui pretensão emancipatória. Igualmente, a temporalidade torna-se relevante para fins de positivação da vontade democrática em determinado recorte histórico, sociológico e territorial. Entendimento contrário conduz ao bloqueio da legitimidade reflexiva, ou seja, pela condição anacrônica dos movimentos sociais pretéritos capazes de conduzirem a mudança ou a permanência da ordem constitucional num escopo de justificação alcançado de antemão.
Desse modo, estão compreendidos não como ato único que se totaliza de forma episódica, mas, de outra sorte, é potência que se acumula em processos contínuos demarcados por avanços e retrocessos. Para se assumir a categoria “povo”, antes, cabe delimitar a fronteira discursiva traçada ao longo das linhas dos Estados-nações existentes nas comunidades raciais ou linguísticas ou por afiliação política (Butler, 2018, p. 07).
Implica considerar que a ideia de democracia, no paradigma ocidental moderno, em tese, resume-se a utilização moderada do exercício do poder. Por outro lado, a relação entre liderança e democracia é problemática. Haja vista, as dificuldades dos movimentos sociais “sem liderança que proliferaram em todo o mundo de alcançar mudanças duradouras e criar uma sociedade nova. Como articular estratégia política e tomada de decisões para efetuar mudanças duradouras e democráticas?” (Butler, 2018).
Butler (2018, p. 149) diverge das visões políticas que sustentam a democracia entendida como o acontecimento de uma multidão que se reúne, pois aquilo que é experimentado (sentido) de injustiça e não viabilidade de vida acentua o significado coletivo das coisas. As ruas e as praças não devem ser as únicas plataformas de resistência política, porquanto imaginar outros modos e espaços de comunicação é recusar a cumprir o papel de prisioneira ou de prisioneiro funcional (I would not to). Essa discussão será retomada na terceira parte desse artigo.
A reunião coletiva de corpos em assembleia é uma das espécies do exercício da vontade popular, cuja ocupação e a tomada de uma rua que parece pertencer a outro público, uma apropriação da pavimentação com o objetivo de agir e discursar que pressiona contra os limites da condição de ser reconhecido em sociedade (Bluter, 2018, p. 167). Assim, sugere-se lutar por uma concepção ética (justa) fundamentada na superação da precariedade de recursos materiais e a partir desta.
O direito de assembleia deve preceder e exceder toda forma de governo institucionalizado, mesmo um que reconheça e proteja esse direito. Ressalvas feitas ao “governo da turba”, a liberdade de assembleia é entendida como pré-condição à política de corpos que podem se mover e reunir de forma não regulamentada, encenando suas demandas em um espaço que, assim, se torna ou é transformado em público ou extrapola as pré-compreensões estabelecidas.
Um direito plural e performativo de aparecer, que afirma e instaura o corpo como meio para um campo político e que em sua função expressiva, significa, transmitir uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária (Butler, 2018, p. 17). Outros limites formulados revelam um conjunto de dificuldades de mobilização política de setores da população incorporados a um problema de predicação do substantivo abstrato “povo”; ora como sujeito passivo, ora, como macro sujeito coletivo agente das transformações sociais.
As idealizações sobre o que e como o povo pode se constituir e se definir são pendulares entre a “demonização” e a “beatificação” correlacionadas a uma concepção de ordem, seja procedimental seja substancial, para prevenir os danos de uma sociedade conflituosa. Nesse sentido, produz excrecências como “democracias com medo do povo” ou o “populismo autoritário”, conforme apontado na introdução.
Para correlacionar os limites e as possibilidades de marginalidade social articula-se a coincidência entre essas duas categorias utilizadas enquanto instrumentos para a identificação da natureza dos conflitos sociais, da estrutura bloqueadora da visibilidade de outras formas de saber, sentir e pensar. A condição de vulnerabilidade da periferia não se presta a condição caracterizadora/definidora dessa relação complexa.
Populações marcadas pela vulnerabilidade e pela precariedade diferencial não estão por esse motivo imobilizadas (Bluter, 2018, p. 163). Ao consolidar tal adjetivo pretende-se ampliar a noção negativa de paternalismo político sobre os corpos periféricos associada a culpabilização de sua situação material, sendo consideradas apenas duas alternativas possíveis: ora alvos, ora tutelados.
Mobilizadas as categorias nessa perspectiva, eclipsa tanto os movimentos populares (manifestações da soberania popular), quanto as lutas ativas de resistência e por transformações sociais e políticas (Bluter, 2018, p. 158). Nesse turbilhão de identidades étnicas, cabe considerar, por fim, que os limites formais, estruturais e institucionais dizem respeito às próprias limitações daquilo que se pretende atribuir de significado para o termo democracia.
Ao passo que compreender os sujeitos concretos que simultaneamente constituem o elemento povo e, por ele constituído, nesse cenário, busca-se ressaltar a questão do território indígena não enquanto objeto de análise em abstrato, mas, como parte integrante do povo com especificidades e necessidades particulares. Realizadas as primeiras aproximações cumpre contextualizar o ambiente teórico sobre o qual se pretende testar a hipótese apresentada na parte introdutória. Tarefas que serão realizadas nas próximas seções.
Possíveis respostas do constitucionalismo democrático latino americano para as questões indígenas
Da seção anterior resta evidenciada algumas pré-compreensões que envolvem os sujeitos da participação popular e seus possíveis estranhamentos diante das respostas convencionais (limites formais, estruturais e institucionais). É chegada a hora de detalhar as especificidades que envolvem o constitucionalismo democrático latino americano.
Inicia-se de uma conhecida localização geo-histórica fundadora e ao mesmo tempo fundada nas perpétuas “fantasias de um indígena desorientado e inculto” (Mignolo, 2005, p. 19), cujos processos retratados pela historiografia oficial remontam às clássicas revoluções liberais europeias e estadunidense. Com o advento do “giro descolonial” (Quijano, 2005) espaços outros são criados ou idealizados para que novos sujeitos de direito sejam reconhecidos e inseridos nos textos e contextos constitucionais pela contribuição do constitucionalismo democrático latino americano.
Tal locução adquire o significado de um movimento não apenas de estruturação e de ordenação dos poderes constituídos, mas, de outra sorte, adquire contornos que envolvem a pretensão de descolonizar o exercício do poder, do saber e do próprio ser. Situar temporal, geográfica e historicamente esse movimento é uma tarefa problemática que atrai para si muitas críticas. Por intermédio de contínuas redes de tensões entre as fontes de poder e a formulação de certos limites e fundamentos (jurídico-normativos ou não) para a permanência e a possibilidade da ação válida, a inovação coletiva, a reforma ou a revolução (Martínez Dalmau, 2014).
Na tentativa de superar o tratamento da marginalidade como uma unidade fechada de análise, essa visualizada como uma variável situada na estrutura global da sociedade, a manifestação de elementos indesejáveis não há como ser considerada uma “falta de integração”, mas a inconsistência nas relações sociais associada e compatível com a estrutura geral da sociedade (Quijano, 1978, p. 43).
O conceito de marginalidade social configura-se pela (.) falta de participação ativa e passiva; (ii) desintegração interna; (iii) barreiras sociais à participação política e (iv) não pertencimento ao sistema dominante. Diante o estruturalismo funcionalista, a marginalidade social fora situada no binômio consenso/estabilidade e na produção de uma “sociedade bem ordenada”. Do estruturalismo histórico à marginalidade social localizam-se as dimensões conflitiva e descontínua da natureza que busca destrinchar a natureza dos conflitos e suas implicações (Quijano, 1978, p. 30).
A multidimensionalidade da marginalidade social perpassa pela avaliação processual de como são erguidos os modos de perceber a construção de seres desajustados ou criativos (transitórios ou não), bem como o conflito radical entre as formas de existência, as formas hegemônicas, marginais e alternativas num sistema social hierarquizado. Esse sistema possui tendências de hegemonização mediante a histórica sobreposição de determinadas narrativas.
Blocos analíticos concretos sobre as formas da marginalidade social levantam a indagação pautada pelo seu aspecto relacional e ainda pela decomposição da estrutura econômica social dominante e as populações a elas não incorporadas (Quijano, 1978, p. 56). A proposta que se assume, nesse cenário, consiste em visibilizar múltiplas etnias indígenas que originalmente se fazem presentes no contexto fático (concreto) e contribuem para a formação cultural do povo nacional que de maneira caricata são retratadas monologicamente apenas como “índios”.
Pondera-se, todavia, que a positivação no texto constitucional não possui o condão de sozinha alterar séculos à fio de violências e de invisibilizações. Há que se reconhecer os avanços jurídicos sem, contudo, desconsiderar os desafios que isso representa. Modelos dessa arquitetura institucional inovadora proporcionada pelo constitucionalismo democrático latino americano se faz presente na constituição colombiana (Constitución Política de Colombia 1991), ao reconhecer a diversidade de culturas (arts. 01, 07, 70, entre outros), na constituição equatoriana (Constitucion de la Republica del Ecuador 2008), pela justiça indígena (art. 171) e na constituição boliviana (Constitución Política del Estado 2009), pela organização em forma de Estado plurinacional (arts. 01, 02, 11, entre outros).[2]
A contribuição específica desse movimento de deslocamento latino americano - também identificado em outras regiões geográficas do globo terrestre como Caribe, África do Sul ou Ásia, por exemplo - para o direito constitucional consiste em voltar as atenções para “as questões sociais com a valorização do protagonismo indígena através da normatização dos seus saberes, a exemplo do Pachamama e o ‘bem viver’” (Farias et al, 2018, p. 153). Esse redesenho institucional objetiva a “proteção da vida [indígena] em todos os seus aspectos” (Silveira, 2018, p. 30) não se encontra inteiramente expresso no texto positivo da Constituição brasileira de 1988.
Nesse diapasão, o sobredito texto constitucional brasileiro inaugura manifesto progresso do ponto de vista democrático, no entanto, o fez de forma limitada em determinadas matérias. Isso porque, apesar de reconhecer expressamente a questão indígena nos arts. 231 e 232 (Capítulo VIII), restringe-se à tutela dos interesses da coletividade indígena, sem que houvesse a previsão de outros mecanismos.
Nessas entrelinhas não está dito que o ideal para o modelo constitucional brasileiro estaria no mero replicar das experiências estrangeiras, mas em compreender que outras formas de tratativas são possíveis. No caso da República Federativa do Brasil, ao se estabelecer certas opções, enseja um grau relativo de “proteção paternalista” (Alves, 2015, p. 121), que num primeiro momento até atende de maneira pontual e localizada as necessidades concretas dos povos originários, mas não comporta as dimensões de suas complexidades; território, por exemplo.
É notório que todas as constituições referenciadas são posteriores à edição da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88); mas, nem por isso, nenhuma das cento e quatorze manifestações do poder constituinte derivado de reforma realizadas, até agora, via Emenda à Constituição[3] se preocuparam em aperfeiçoar ou ampliar esse aspecto do texto constitucional brasileiro. O silêncio (o não-dito hermenêutico) é revelador das prioridades do Estado brasileiro. Por outro lado, ocupou-se de instituir o chamado “novo regime fiscal” (Emenda Constitucional n. 95/2016), que, em princípio, vigorará pelos próximos 20 (vinte) exercícios financeiros, com impactos negativos em termos de direitos sociais fundamentais (Almeida et al, 2019).
Cabe contextualizar que as dimensões do desenho constitucional brasileiro adotado em outubro de 1988 reforçam a ideia de tutela ou de perpétua incapacidade dos povos indígenas, ao invés de reconhecer sua autonomia ou autodeterminação. Essa “aposta na assimilação” realizada pela assembleia nacional constituinte em 1987 está vigente desde a promulgação da CRFB/88, muito embora seja passível de aprimoramentos no caso concreto pelos órgãos constituídos, leia-se tarefa conjunta a ser desempenhada pelo Executivo, pelo Legislativo, pelo Judiciário e pela sociedade civil.
Implica questionar as capacidades institucionais dessa missão. Especialmente se considerar o Judiciário como um dos possíveis garantidores dos direitos e das garantias fundamentais dos povos indígenas. Essas pautas, assim como a expressiva maioria da agenda de direitos sociais, encontram-se comprimidas quando não suprimidas dos debates públicos. Guardadas as devidas proporções esse fenômeno corresponde aquilo que Coelho (2017, p. 36) chamou de “autofagia do sistema constitucional” ou simplificadamente de “uma involução do ‘novo’ Constitucionalismo”.
Por essas razões que as questões da participação popular ou da supremacia e da efetividade do texto constitucional são periodicamente colocadas em xeque não apenas no Brasil, em particular; mas, na América Latina, em geral. Aqui surgem duas demandas brasileiras que seguem parcialmente respondidas e interagem de maneira direta com as concepções teóricas até então trabalhadas, a primeira delas diz respeito ao populismo.
A abordagem empreendida por Laclau (2013) envolve as dimensões do discurso; dos significantes vazios e hegemonia; e da retórica. Para os recortes metodológicos propostos, interessa compreender que o populismo surge como uma possibilidade distintiva e presente na estruturação da vida política (Laclau, 2013, p. 48). Ao que tudo indica, a concepção popular sobre a qual o constitucionalismo democrático latino americano se alinha converge com o populismo, enquanto tradução essencial do político, ou seja, a construção discursiva com múltiplos significados, conforme demonstrou o citado autor.
Povo, enquanto sujeito político, possuidor de uma identidade coletiva heterogênea contrasta-se com seu significado não partitivo, segundo o qual, não é apenas parte de um todo, mas também uma parte que é o todo (Laclau, 2013, p. 319). Negar ou depreciar as práticas sociais originárias ou endereçadas ao povo representa “na verdade a subestimação da política” (Laclau, 2013, p. 27), ainda dentro desta perspectiva, Laclau (2013, p. 53) alerta que colocar sob a etiqueta de “populismo” uma série de movimentos muito díspares e, ao mesmo tempo, nada diz sobre o sentido dessa etiquetagem.
O segundo ponto remete à especificidade dos povos indígenas em relação ao seu território. O território indígena é ao mesmo tempo essencial para a manutenção e o desenvolvimento de sua cultura ancestral, por estarem umbilicalmente ligados à terra, em algumas circunstâncias especiais representam verdadeiro “obstáculo incômodo” para a visão desenvolvimentista econômica. Povos originários vinculam-se a um alto grau de inter-relação ao território tradicional que, por sua vez, remetem à compreensão ontológica e axiológica das cosmovisões indígenas.
Frente as especificidades dessa matéria, as análises reclamam o aprofundamento não apenas dos aspectos técnicos jurídicos; a partir e para além desses contar com a realização de laudos antropológicos, estudos especializados e de técnicas voltadas para a incorporação dos discursos dos povos originários e da sociedade civil organizada (pela realização de audiências públicas, admissão de terceiros interessados - amici curiae, protestos de rua e outras formas de participação popular) para mobilizar adequadamente suas especificidades.
Desse modo, tem-se que a insensibilidade à essas questões remetem, por sua vez, a uma questão macroestrutural. Vale dizer, o constitucionalismo reproduzido por matrizes hegemônicas (poder, saber e ser) é responsável, em parte, por invisibilizar ou visibilizar apenas formalmente essa situação. Por outro lado, a promessa de um constitucionalismo latino americano, novo, inclusivo e democrático, vai ao encontro do esforço para, no mínimo, repensar o tratamento conferido as questões territoriais indígenas.
A efetividade dessa hipótese é tema que permanece aberto para outras frentes de trabalho. Cabe repisar que a conformação aplicada nos cenários latino americano reclama futuras pesquisas, cujos limites traçados pelos objetivos desse artigo não permitem descer ás minúcias dessa proposta.
Por ora, resta compreender o potencial transformador que o movimento latino americano carrega consigo; não se trata, com efeito, de encontrar uma resposta pré-determinada ou um paradigma “bem-sucedido” a ser seguido. De outra sorte, as constituições latino americanas são “instrumentos oriundos da democracia direta e da democracia participativa [e] revela[m] a vontade que o povo tem de mudar as estruturas políticas e jurídicas de Estado a seu favor” (Cademartori y Miranda, 2016, p. 103).
No final das contas, a tese defendida consiste em considerar como insuficiente as respostas oferecidas pelo constitucionalismo democrático latino americano, assim como as respostas apresentadas pelos movimentos indígenas, no caso brasileiro. Ao mesmo tempo em que se reconhece seus avanços.
A par disso, junto aos quatro desafios para a América Latina, destacados por Bedin (2010), quais sejam: (.) a superação do patrimonialismo, (ii) a redução das desigualdades sociais, (iii) o estabelecimento da mesma cidadania para todas as pessoas e (iv) a sustentabilidade ambiental, vale acrescentar uma quinta provocação que é justamente a questão do reconhecimento dos territórios indígenas.
Entre extermínios e colonizações, necessidades e insuficiências existem especificidades subjacentes às lutas históricas indígenas que ainda hoje não formam adequadamente respondidas e, servem para desvelar a construção de um Estado de direito incompleto (deficitário). E o objeto de recorte específico aprofundado na próxima seção será a disputa pelo território na aldeia indígena Maracanã/RJ.
A pressão dos movimentos indígenas no caso da Aldeia Maracanã - Rio de Janeiro/RJ
Infere-se das seções anteriores a existência e a atuação de um movimento (não retilíneo, não uniforme, nem isento de contradições) em desenvolvimento na América Latina com a pretensão de emancipação democrática. Reforça-se a tese da inadequação teórica e prática do constitucionalismo democrático latino americano no caso brasileiro. A primeira proposta, já foi examinada na segunda parte desse artigo, cumpre verificar do ponto de vista concreto as possibilidades de confirmação (ou não) dessa hipótese.
Além disso, tem-se o predomínio de pesquisas essencialmente teóricas, sobretudo no campo jurídico, seguido da ideia de autossuficiência desse instrumento metodológico. Na contramão, essa pesquisa entende-se não apenas pela adequação, mas, principalmente, pela necessidade de demonstração de algum lastro concreto, ainda que exemplificativo para testar a resposta inicialmente apresentada.
Busca-se por meio de uma amostra qualitativa representar aspectos trabalhados ao longo do artigo e expor as peculiaridades do caso da aldeia indígena Maracanã, sitiada pela cidade do Rio de Janeiro/RJ. O fato de se tratar de uma aldeia ao mesmo tempo indígena e urbana é um traço peculiar que precisa ser compreendido de forma aproximada. Já foram ajuizadas pelo menos oito ações judiciais com distintos desfechos,[4] no entanto, ainda hoje não se resolveu em definitivo a questão da posse indígena da terra reivindicada pelos descendentes dos povos originários.
As discussões tiveram seu ponto alto quando da realização da Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol (Fifa), realizada no Brasil em 2014, com a ameaça de derrubada das habitações para a instalação do chamado Complexo Maracanã Entretenimento. Em termos processuais, além das comunidades originárias o Estado do Rio de Janeiro e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pleiteiam a titularidade dos direitos reais sobre o mesmo bem imóvel.
O posicionamento mais atualizado do qual se tomou conhecimento, novembro de 2016, remete ao julgamento do recurso de agravo de instrumento,[5] pela Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Mediante decisão unanime o Tribunal confirmou a decisão interlocutória prolata pela 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro ao determinar a desocupação do bem público.
Hipótese na qual, foi pleiteada pelos indígenas e seus apoiadores a atribuição do efeito suspensivo e reforma da decisão via agravo de instrumento. A Sétima Turma, seguiu o voto do relator e indeferiu a atribuição do efeito suspensivo, bem como negou provimento ao recurso.
Em face dessa decisão do TRF 2ª Região foi interposto recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), contudo não foi admitido na origem (juízo a quo) com fundamento no enunciado de súmula predominante n. 07 do STJ, sob o argumento de reexame do conjunto fático-probatório. Pretensão inadmissível nos tribunais superiores.
O mérito da decisão judicial foi tratado como mero esbulho possessório o que na prática significa a invasão da propriedade alheia com privação total de algumas das faculdades do legítimo proprietário do bem imóvel. Por outras palavras, não houve o reconhecimento ou a comprovação da “condição de povo tradicional”, por consequência, houve a “expedição de mandado de reintegração de posse” em favor da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre outros fundamentos, porque incumbe à Funai garantir o cumprimento da política indigenista (Brasil, 2016).
Com isso, afasta do caso em análise a disputa indígena pela posse do território, ou seja, recebe tratamento como direitos reais de propriedade (direito privado). Segundo consta no inteiro teor do acórdão, trata-se de “ocupação de patrimônio público como forma de coação política” (Brasil, 2016, p. 02), essa afirmação se constata pela atuação do movimento “Ocupa Funai”, deflagrado pela desocupação da “Aldeia Maracanã”.
Para além das questões jurídicas, existem outras duas de igual relevância (social e política). A primeira consiste nos discursos de ódio e na tentativa de deslegitimação da história e da cultura dos povos originários. Ainda nesse sentido, tem-se no argumento de que a aldeia indígena é ponto de consumo e de venda de substâncias entorpecentes ilícitas, vulgarmente chamada de “cracolândia”. Coincidência ou não estas são as hipóteses que caracterizam a versão do “populismo autoritário”, consistente na utilização da “opinião pública” e no argumento da lei e da ordem (Hall et. al., 1978), apresentado na parte introdutória desse artigo.
Nessa perspectiva, desconsidera-se a condição de indígena, ao mesmo tempo, em que existe a tentativa de tornar antijurídica a resistência dos movimentos indígenas. Uma das tantas críticas que se impõem às condutas do Judiciário repousa na ausência de sensibilidade (reconhecimento étnico) para o tratamento dessa questão. Um dos efeitos práticos desse tipo de decisão judicial consiste em reforçar o conservadorismo do tempo presente. Por outro lado, é questionável as possibilidades de manutenção da tradição e culturas indígenas num ambiente altamente urbanizado como é a cidade do Rio de Janeiro/RJ.
O segundo ponto a ser trabalhado, reside na “reestruturação” do aparato estatal no que toca a identificação, delimitação, demarcação e registros das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Anteriormente inserida nas competências da Funai, todavia, por força do art. 21, XIV, da Medida Provisória n. 870/2019,[6] passou a ser uma das atribuições do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Não fosse bastante, a MP n. 870/2019[7] também previu a competência da referida pasta ministerial para reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal e quilombolas (Brasil, 2019b). Seguramente, no caso dos movimentos indígenas, constitui o completo esvaziamento da Lei n. 5.371/67, que autoriza a instituição da “Fundação Nacional do Índio” e dá outras providências.
Isso porque os interesses “ocultos”, albergados por determinados agentes públicos dentro do Ministério da Agricultura, e as demandas por efetiva participação dos movimentos indígenas podem estar em franca oposição; aquele ao defender a expansão do agronegócio voltado para a manutenção de uma agenda econômica. Ao passo que o reconhecimento e a manutenção dos territórios tradicionalmente ocupados constituí a principal demanda reivindicatória que certamente serão comprimidas (ou suprimidas) pela pauta econômica, tanto no âmbito rural,[8] quanto no âmbito urbano.
Para fazer jus à verdade dos fatos ao mesmo tempo em que se desfaz o “derrotismo” ou a “visão de terra arrasada” o sobredito inciso do artigo da MP foi suprimido, por meio da aprovação da Emenda n. 409 à Medida Provisória n. 870/2019, pela decisão da Comissão Mista do Congresso Nacional em sessão realizada em 09/05/2019.
Muito em razão das mobilizações da sociedade civil e dos movimentos indígenas conjugados com os Órgãos Legislativos de controle dos atos do Executivo Federal. Aqui, é possível aproximar teoricamente esta constatação com a faceta positiva desse “novo tipo de democracia”, que consiste no “controle dos poderes estatais e as decisões tomadas pelos representantes políticos” (Cademartori y Miranda, 2016, p. 10).
Entretanto, não há como se estabelecer validamente relação direta entre essas frentes de defesa de direitos fundamentais (social e estatal). Por certo, as mobilizações sociais são pontos que precisam ser ressaltados, sem, contudo, incidir em generalizações ou idealizações abstratas não verificáveis. Também há que se reconhecer a provisoriedade das decisões favoráveis aos movimentos indígenas, que serão objeto de permanente disputa interpretativa e argumentativa.
Assim, para questão da aldeia indígena Maracanã abrem-se pelo menos duas frentes para a atuação dos movimentos indígenas: (.) atuação judicial e (ii) pressão política e social na defesa de seus interesses. Essa última representada pelo poder da recusa, traduzida pela estética do não. A política da negação, da projeção e do deslocamento. A reivindicação política é ao mesmo tempo representada, feita, exemplificada e comunicada (Butler, 2018, p. 151).
Portanto, mesmo diante de cenários adversos aos movimentos populares, esses não exercem o “peso político” suficiente para fazer frente a diminuição ou a subtração dos direitos e das garantias fundamentais e sociais. É verdade que existem conquistas pontuais em determinados aspectos e, isso precisa ser reconhecido, porém a manutenção desses avanços é algo contingente e efêmero.
Resta, por fim, lançar outros olhares para os direitos fundamentais e sociais pressionados por interesses corporativos; a crítica pautar-se por uma leitura fidedigna ao tamanho e a robustez dos desafios que são enfrentados, nem sempre vencidos ou mesmo superados. Para tanto, cumpre resgatar o conceito de democracia desencantada, apresentada por Barral (1992, p. 51), que “pressupõe a livre disputa de interesses dos diversos grupos sociais e limita a atuação do governante dentro de parâmetros dados pelos governados” enquanto condição de possibilidade para a alteração contínua e progressiva do atual estado de coisas.
Por isso, o constitucionalismo democrático latino americano fornece uma resposta possível para essa questão, a exemplo do reconhecimento da justiça ou do direito consuetudinário indígena (Alves, 2015, p. 121). Todavia, pelas razões apresentadas no percurso investigativo o modelo jurídico institucional brasileiro encontra dificuldades no tratamento das complexas questões ligadas aos territórios indígenas.
Conclusão
Em síntese conclusiva, de acordo com os materiais analisados, entende-se que as respostas apresentadas são insuficientes para enfrentar as questões dos territórios indígenas, sobretudo aqueles confrontados pelas grandes cidades. Apesar de a participação popular construir espaços de afirmação para a abertura de direitos a saberes outros, num movimento de aproximação teórico multidisciplinar, ainda não é suficientemente sólido para impor o redirecionamento da agenda pública. Verificando-se retrocessos seguidos de alguns avanços pontuais.
Os aspectos axiológicos no direito, inseridos com o apoio do movimento do constitucionalismo democrático latino-americano, constituem progressos significativos para viabilizar na máxima medida possível o acesso das pessoas, sobretudo as invisibilizadas, nas instituições formalmente democráticas, a exemplo do Judiciário brasileiro.
Entre acordos e desacordos, compreender os subterfúgios utilizados para a perpetuação do atual estado de coisas ou para a deterioração das condições de vida para estratos sociais específicos (indígenas). A mobilização difusa dos movimentos organizados política e socialmente são paradoxais: se, por um lado, podem representar o rompimento dos limites para a participação legítima (versão autoritária do populismo), por outro lado, são os primeiros passos em direção à refundação do Estado democrático de direito, que remete ao “povo” a edificação do elemento político ou simplesmente populismo.
Já a participação dos movimentos indígenas, não necessariamente no caso brasileiro, representa uma situação problema que foi parcialmente respondida pelo constitucionalismo democrático latino-americano, ao passo que não foram sequer retratadas pelas teorias ditas tradicionais.
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Notas
Información adicional
Cómo citar este artículo: Emerique, L., Khattar, S. y De Oliveira, W. (2022). Desafios da aldeia indígena Maracanã/RJ e a resposta do “Constitucionalismo Democrático Latino Americano”. Jangwa Pana, 21(1), 52-63. doi: https://doi.org/10.21676/16574923.4539